domingo, agosto 20, 2006

Chanel não morreu e brilha no Rio

Talvez a Eva Todor tenha mesmo razão. Marília Pêra “não existe”. Uma criatura que se predispõe a dar fôlego de vida a personalidades tão distintas e irrequietas quanto Dalva de Oliveira, Carmen Miranda, Maria Callas e Coco Chanel, só para citar apenas as mais excêntricas, é muito, muito difícil de ser definida. Marília estreou a peça Mademoiselle Chanel, sexta, no majestoso Teatro Maison de France. “Le tout” Rio disse sim. A ocasião não encontraria concorrência à altura nem mesmo se o Papa estivesse na cidade, exagero. Afinal, Marília Pêra e Coco Chanel, juntas sobre o mesmo palco, são uma tsunami artística improvável e definidamente sublime.

Quando digo que “le tout” Rio disse presente, mato a cobra e mostro o pau: estava lá o ministro da Cultura Gilberto Gil, de calça branca e túnica da mesma cor, com uma sandália de couro daquelas que enforcam o dedão e libertam o fura-bolo e seus vizinhos, muito própria das lojas do Mercado Modelo baiano. Estava lá a eterna primeira-dama sem mandato, Lily Marinho, cercada de afeto, tailleur preto e micro-bolsinha Chanel, naturalmente. Estava lá a grande diva. É pouco: a matriarca do talento. Ih, muito pouco: a estrela, o cometa, o meteoro dos palcos brasileiros – agora sim: Bibi Ferreira! Da Eva Todor já falei. Ah, não posso esquecer: Tônia Carrero, linda, linda, sentada na terceira fila da platéia, embevecida, aplaudindo efusivamente.

Afora toda essa expressão artístico-social carioca, a lista de nomes e sobrenomes da noite é infindável. Antônia Mayrink Veiga Freering, em temporada carioca, sentada atrás de mim, com um jeans Diesel e o marido, Guilherme (camisa branca Ralph Lauren com as mangas arregaçadas, idem para a calça jeans). Maria da Glória Antici com seu semblante imperial, como saindo de uma tela de Edgar Degas. E quando o Daniel Oliveira chegou, t-shirt preto e branca em louvor a Jean-Michel Basquiat (o grafiteiro haitiano que riscou Nova York, como um profeta Gentileza movido a heroína), braços dados com sua cabocla, não teve para ninguém - a noite estava completa!

Daniel é o Cazuza do cinema, você sabe. É de uma doçura, de uma leveza, de uma beleza... Feito a Marília Pêra: difícil definir. Para começar, tem aquele meio-sem-jeito próprio dos talentosos. Parece que está sempre a se perguntar: “o que é que essa gente vê em mim, para me fotografar tanto, para me entrevistar tanto, para me paparicar tanto”? Essa gente toda que o espreita percebe um espírito desarmado, difícil de encontrar nos dias de hoje, e muito mais improvável ainda quando se trata de uma estrela de televisão - classe da qual a maioria, sabe-se, é movida a ego inflado. Daniel, não. Tem aquele jeito nada estudado, ombros fechados, olhando para o chão, timidíssimo, mas grandioso quando explana o sorriso e acende o olhar. Sem contar que, frente às câmeras, é aquele vulcão em erupção que todo mundo aplaude. Um vulcão novíssimo - não tem 30 anos.

O começar da noite, no hall de entrada do consulado francês carioca, estava infernal. Um calor! Meu Deus. Culpa dos refletores e, claro, da junção de estrelas num mesmo e exíguo pedaço. Pelo clima já se tinha a noção de o quanto seria “quente” o programa. A cada girar da porta envidraçada, uma surpresa. Olha lá a Regina Gama, eternamente Marcondes Ferraz, como é mesmo o nome do novo marido dela? Olha lá a Aracy Cardoso, uma moça, inteiraça. Silêncio! A Bibi Ferreira chegou! Flash, flash, flash!

Maria Adelaide Amaral, autora da peça, pôs uma camélia cor de rosa sobre o terninho preto. Flash, flash, flash! Aliás, camélias brancas e colares de pérolas, marcas do estilo Chanel, foram os acessórios preferidos pelas damas presentes. Olha lá: é a Marília Kranz! Flash, flash, flash!

“Envelheci”, diz a Chanel da ficção no palco do Maison de France, começando a contar sua história. A mademoiselle da vida real disparava: “A cada dia que passa, simplifico alguma coisa. Quando não puder inventar mais nada, será o fim”. Marília Pêra continua inventando.
Por exemplo, um repousar da mão na cintura todo novo, com o punho encostado no quadril e os dedos ocupando-se de um cigarro, cotovelo armando uma geometria firme com a linha do corpo. Inventando um leve chacoalhar da cabeça, ritmado com o que se despeja em palavras curtas e rápidas, induzindo seus ouvintes ao inarredável acordo. Inventando um jeito só seu de romper acima a escada espelhada, costas para o público, inclinando levemente o pescoço, no meio do caminho, e mirando a platéia com a certeza de uma loba diante da presa indefesa. Uma loba na idade da leoa.

Maria Adelaide diz que “quis saber quem era Chanel, como era, como sentia, se exteriorizava seus sentimentos ou os mascarava, por que falava tão rápido cuspindo as palavras como balas de uma metralhadora, por que parecia tão dura, o que escondia a sua altivez, por que era tão mordaz”. Pelo visto, conseguiu. Marília Pera atesta: Chanel era “uma bruxa! Uma fada boa! Boníssima amiga! Criativa, engraçada, um anjo! Um demônio”! Ambas, autora e atriz, acertaram em cheio no que querem mostrar ao público, no caso, a vida de uma mulher que reinventava sua história “de maneira brilhante a cada momento”, em cada movimento, surpreendente, como diz o diretor do espetáculo Jorge Takla. “A lenda é a consagração da celebridade”, contava Chanel.

Na platéia do Maison de France, o ator Carmo Della Vechia com o melhor amigo, ex-melhor amigo do ator Leonardo Vieira. Ainda: Lázaro Ramos com a mulher Taís Araújo e seu (dela) jeito Ellen de ser. A cabocla da novela e do Daniel Oliveira, Vanessa Giácomo, ouviu dizer que a peça era sobre Chanel, e sapecou um vestido preto, rendado, com saia godê de debutante. Contrastava com o jeans surrado do amado, seu (dele) tênis estilo Conga e o blazer-de-implicar-com-o-Peta: de pelica preta.

Outro que parou tudo quando chegou foi o sumido ator Ricardo Blat, talento espargindo via poros. O Blat também ouviu dizer que era Chanel, e tirou do closet uma calça com a estampa inglesa príncipe de Gales em preto e branco. Nélida Piñon, sentada na segunda fila da platéia, a representação mais exata da elegância. Geraldinho Carneiro era talvez o homem mais chique da noite, calça jeans, sapatos marrons engraxadíssimos e sem as pavorosas fivelas próprias dos “acafonados”, tudo arrematado por um blazer bem cortado, no comprimento certo, cor de outono, sobre a camisa branca livre do caos do cós.

Gabrielle-Bonher Chanel nasceu em 19 de agosto de 1883, uma autêntica leonina (vaidosa, centro de todas as atenções). Filha de uma arrumadeira-cozinheira é, ainda hoje, a maior personalidade da moda de todos os tempos. Libertou a mulher dos espartilhos, internacionalizou o perfume (“mulher sem perfume não tem futuro”), inventou a bijuteria, casando badulaques baratos com pedras preciosas. Alterou a carteira de identidade para camuflar a velhice. (In)certa vez, um repórter a perguntou: “Qual é a sua idade”? Ela: “você não tem nada a ver com isso”.

Em 10 de janeiro de 1971, deu seu último suspiro (“para mim, a única coisa apaixonante que ainda pode acontecer é morrer”). Antes de partir, porém, deu ordens ao fiel mordomo e herdeiro, François: “Quando eu morrer, leve-me à Suíça. Ponha-me atrás do carro. Se perguntarem alguma coisa, na fronteira, diga que é Mademoiselle Chanel, que já está meio gagá. E não faça bobagens, porque estarei com você em outra dimensão”.

A Chanel de Maria Adelaide Amaral não morre. Finaliza seu repertório sumindo em uma escada, diáfana entre a sanidade e o desequilíbrio mental. Talvez a autora tenha obedecido à ordem de mademoiselle, de que ninguém estava autorizado a vê-la fenecer.

Fotos: reproduções/colagem nossa

Um comentário:

  1. Marcio, este texto deveria constar dos anais da Academia Brasileira de Letras.

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