Exposição de Lasar Segall chega com quadro jamais visto no Brasil
(texto transcrito da "Tribuna da Imprensa", edição de 23/10/2007)
Marcio.G
Esta é a primeira vez que o "Retrato de Lucy" sai de Paris. Reinando absoluta no Centro Georges Pompidou, a obra de arte assinada por Lasar Segall, comprada pelo governo francês em 1938, é a peça de resistência da exposição retrospectiva "Corpo presente", do chamado pai do Modernismo, que a Pinakotheke Cultural abre hoje.
A ocasião pede traje de gala, ainda que no figurado. Há 20 anos, o Rio não recebe uma retrospectiva do russo naturalizado brasileiro, elegantérrimo, diga-se, tido pelas Bárbaras Heliodoras das artes plásticas como um dos mais conceituados representantes do período expressionista. A mostra é para marcar os 50 anos de morte do pintor, que nasceu em 1891.
E, como um acontecimento deste porte deve passar bem àquela moda de arrasa-quarteirão, a exposição chega com um livro bacanérrimo ("Corpo presente. A convicção figurativa na obra de Lasar Segall", R$ 89), guardado em capa dura, luxo só, com 200 imagens, entre pinturas, fotografias e documentos. Um exemplar obrigatório nas cabeceiras das Lilys e das Evinhas.
Escrito em português e inglês, 288 páginas, a obra saiu do forno sob as bênçãos da Lei Rouanet. Tem texto do ex-ministro tucano e "collorista" Celso Lafer, o imortal que é tido como especialista na obra do pintor: "Ele mesmo dizia que `cada homem é filho do seu tempo e sua expressão é a expressão do seu tempo'. Estava atento e ligado ao que se passava à sua volta", conta Lafer.
A mostra é composta de 40 peças do Museu Lasar Segall, de São Paulo, cuja diretora, Vera D'Horta, assina a curadoria. Além do "Retrato de Lucy", estarão aos olhos do público obras importantes como "Floresta com reflexos de luz" (1954), "Kaddish" (1917/18) e "Cabanas com cerca" (1945). Vale lembrar que o citado retrato é de Lucy Citti Ferreira, aluna e modelo de Segall durante 12 anos. "Um clássico, um moderno clássico", escreveu Vera D'Horta no livro. Os organizadores pensaram também nas crianças e vão disponibilizar profissionais entendidos na obra do artista, a fim de instruir visitas guiadas para estudantes.
Além disso, haverá um terminal de consulta e um trabalho dedicado a professores, para o qual a pedagoga Nereide Schilaro criou um caderno com orientações. Para Max Perlingeiro, dono da Pinakotheke, a exposição "é a mais importante do Rio nos últimos anos".
Além das pinturas, a maioria inédita na praça carioca, há dois desenhos publicados no "Caderno Visões de Guerra" (1940/43) e traços saídos dos lápis dos amigos Mário de Andrade e Tarsila do Amaral. Cândido Portinari, numa certa época, disse que "a obra de Lasar se inscreve entre as de mais alto valor e importância na arte contemporânea".
O pintor da série "Retirantes" escreveu que Segall "foi um artista de rara honestidade, fiel até o fim ao seu ofício e incapaz de subordinar sua inspiração aos fatores momentâneos do sucesso".
Lasar Segall veio ao mundo na Lituânia, então dominada pela Rússia czarista, e desde pequeno (5 anos) estudou desenho. Nasceu para a coisa, como se diz. Chegou ao Brasil com 22 anos. Antes disso, porém, já havia cursado a Imperial Academia Superior de Belas Artes de Berlim e a Academia de Belas Artes de Dresden, a mágica Dresden - quem conhece sabe.
Da primeira, aos 15 anos, foi afastado por ter participado de exposição "Secessão livre", de onde saiu com o Prêmio Max Lieberman. Em Dresden, ele fez sua primeira mostra individual.
"Milagre da luz"
Ao Brasil, chegou para encontrar os irmãos Oscar, Jacob e Luba, que aqui residiam. Lembrando de suas palavras, foi na pátria amada que experimentou o "milagre da luz e da cor". Sua primeira mostra brasileira se deu em um salão alugado na Rua São Bento, em São Paulo. Trabalhador incansável, retornou à Europa em 1916, deixando inúmeras obras em coleções particulares por aqui.
É daquele tempo o "AutoretratoII", com ares expressionistas, que os entendidos notaram com "traços que lembram Picasso". Casou-se dois anos depois com Margarete Quack. De 1919 a 1922, participou de intensa vida cultural na Europa, como a Exposição Internacional de Arte de Düsseldorf. De volta às terras brasileiras, em 1923, fez exposições individuais, decorou - pintando murais - o Pavilhão de Arte Moderna de São Paulo.
Assinou até a cenografia de bailes de carnaval. Romântico inveterado, separado da primeira mulher, em 1925 casou-se com Jenny Klabin, sua ex-aluna, união que durou 32 anos de eterno enamoramento. Foi neste período que sua obra, agora dedicada a temas brasileiros, retratando prostitutas, negros, marinheiros, ganhou de Mário de Andrade a alcunha de "fase da contemplação". "Um sociólogo usando pincéis e tintas para descrever os problemas do Brasil ou do universo", escreveu o crítico Paulo Victorino.
Naturalizou-se brasileiro em 1927. No ano seguinte, mudou-se para Paris, onde se dedicou ao ofício de esculpir. Moldou argila, madeira e pedra. Conheceu a pintora Lucy Citti Ferreira, aquela do "Retrato de Lucy", em 1935. Amizade que durou mais de uma década.
Nos anos 30, também experimentou o paisagismo, dedicando uma série a Campos do Jordão. Em 1937, a sanha dos nazistas, denominada Exposição de Arte Degenerada, em Munique, contou com dez obras suas. Objetivo dos reaças: "Desqualificar a arte moderna".
Vale ressaltar sua intensa participação na vida cultural brasileira nos anos 30. Fundador da Sociedade Paulista de Arte Moderna, era tido como "conselheiro" de modernistas como Gregori Warchavchik, autor do projeto arquitetônico da residência dos Klabin-Segall, na Vila Mariana, onde hoje está instalado o museu do pintor, com 2,5 mil obras e uma biblioteca.
Em seu quintal, Lasar mantinha várias espécies de plantas e muitos exemplares de animais abandonados recolhidos por ele nas ruas. Parecia concordar com aquela máxima: "Desconfie de quem não gosta de bichos". O filme de Ruy Santos, "O artista e a paisagem", sobre vida e obra de Segall, estreou em 1942.
No ano seguinte, o Museu de Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro exibiu uma grande retrospectiva do artista, ao mesmo tempo em que se publicava sobre Segall o álbum "Manga", com textos de Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Jorge de Lima.
A mostra foi reeditada, em 1951, no Museu de Arte de São Paulo. O grande arquiteto Pietro Maria Bardi lançou um livro sobre nosso personagem em 1952. Lasar voltaria a se dedicar a temas brasileiros. Sua série "Florestas" foi bastante elogiada.
Ganhou exposição no Masp e duas salas na Bienal de São Paulo. A partir de 1956, o Museu Nacional de Arte Moderna de Paris trabalhou na organização da grande retrospectiva sobre o artista, mostra que, ironia do destino, só estrearia em 1959, depois de sua morte. Lasar morreu em 2 de agosto de 1957. O coração apertou, fulminante.
EXPOSIÇÃO LASAR SEGALL - Pinakotheke Cultural (Rua São Clemente, 300 - Botafogo). De 23 de outubro a 21 de dezembro. De seg. à sex. das 10h às 19h, e aos sáb., das 11h às 18h. Entrada gratuita. Visitas escolares podem ser agendadas pelo telefone 2537-7566.
LEGENDA - "O retrato de Lucy" foi comprado pelo governo francês em 1938 e jamais exposto no Brasil.