Quem acredita em astrologia diz que os arianos,
nascidos entre 21 de março a 20 de abril, são "regidos por Marte".
Ariano é do signo "de fogo". E todo ariano é "militante,
obstinado, corajoso, rápido, dinâmico e entusiasmado", fui pesquisar. O
dramaturgo Ariano Suassuna, que ontem completou 80 anos, é tudo isso, embora
nascido sob Gêmeos ("sensível, simpático e dinâmico"). Quem esteve
ontem para assistir à "aula espetáculo" do autor de "O auto da
compadecida", no Teatro Municipal, saiu do pedaço com esta certeza. Vincent
Van Gogh, Leonardo da Vinci e Monteiro Lobato eram arianos. Marilyn Monroe e
John Kennedy, geminianos. O evento abriu uma série de outros que acontecerão no
Rio ao longo da semana, para marcar a data redonda de aniversário do grande
brasileiro.
Para começar, só deve ter sido praga da Disney, a qual ele, que nunca saiu do
País, detesta com todas as forças: marcada para iniciar ao meio-dia, às dez da
manhã os ingressos (R$ 5) já estavam esgotados. Só nas mãos de cambistas, de
onde podiam ser arrematados por até (R$ 50). Houve quem pagasse, embora a
papeleta valesse R$ 1 mil, daí pra cima.
Platéia cheia de frescor, atenciosa, bonita, entusiasmada, tomou conta daquele
cenário de rara beleza que é o Municipal, e o tempo até colaborou: o
sol estava deslumbrante. Plateia é modo de falar. Aquilo era uma multidão
comparada à daquela "marcha pra Jesus". Na fila para entrar no Muni,
a dona de casa Maria da Penha Moraes, moradora de Brás de Pina, 68 anos, me
disse que acordou "às cinco", ficou "com a cabeça embaralhada
desde ontem", excitada com o programa que estava por vir. "Comprei o
meu bilhete no cambista, foi um custo danado. Agradeço a Deus por estar viva e
pelo privilégio de assistir a este espetáculo, melhor que qualquer concerto no
Scalla de Milão", comparou, banhada de entusiasmo.
Com cenário feito pelo filho Dantas Suassuna (estavam lá a prole de seis de
Ariano, mais a mulher, Zélia, e todos os netos), que lançou mão de painéis
pintados por Alexandre Nóbrega (genro do escritor), o palco do Municipal esteve
primoroso: o Grupo Gesta e a "cantriz" Ignês Vianna entoavam, nos
intervalos da fala de Ariano, as poesias dele musicadas, em sua maioria, por
seu "grande e saudoso amigo" Capiba, "de quem eu já gostava,
mesmo antes de conhecer pessoalmente", o pai do João Grilo fez questão de
dizer. Mais velho que Ariano, amigo dos irmãos do escritor, Capiba já compunha
quando Suassuna era menino melodias que ecoavam nos instrumentos domésticos, na
Paraíba, dos rapazolas que depois vieram a ser parentes do Chicó, uma das mais
emblemáticas personagens da literatura ariana.
Suassuna começa seu espetáculo fazendo rir, uma sua marca. Diz que “não entende”
como é que aquele mundaréu de gente saiu de casa, "domingo ao meio-dia",
para ouvi-lo falar. "Eu vim porque sou eu, caso contrário, não viria,
não". Desculpou-se por sua voz: "feia, baixa e fraca". Disse que
"vanguarda" para ele "é Dom Quixote". Que o que muita gente
chama de vanguarda "é falso e logo vira retaguarda". Não falou mal do
"lixo cultural" americano porque não houve tempo, já que o pessoal
que cuida (mal) da agenda do Municipal marcou para duas da tarde um outro
espetáculo, o que obrigou o dramaturgo a olhar o relógio a toda hora, pulando
alguns capítulos do seu roteiro."Uma coisa que tenho em comum com o Fidel
Castro é falar muito. Se vocês deixarem, eu vou falando e aí a gente vai sair
daqui às quatro da manhã". Parênteses: (tinham de, esses sujeitos do Municipal,
marcar algum espetáculo para duas horas depois do início de um espetáculo de
Ariano Suassuna?)
Ariano só entende a vida "com paixão", gosta "mais das mulheres
do que dos homens", e lembrou o caso de um amigo que veio falar mal de sua
(do amigo) mulher com Suassuna. No final, quis aprovação do escritor,
"você não acha"? A resposta: "eu prefiro as mulheres". E
neste capítulo, se disse apaixonado por sua mulher, Zélia, grande artista
plástica nordestina (escultora e porcelanista), para justificar seu
"egoísmo" ao não dedicá-la um seu poema, pois os versos tratam da
morte de um cabra que aconselha a mulher a se aconchegar no peito de outro após
sua morte. "Que história é essa de minha mulher no peito de outro? Minha
mulher é minha mulher. Minha", enfatizou. Risos. Parênteses 2: (no início
do espetáculo, Suassuna e Zélia receberam - cada um - um brasão de prata, feito
pelo filho Dantas, pendurado em um cordão de couro.)
Ariano confidenciou que no Grupo Gesta, ali presente, representante do Movimento
Armorial, criado por Suassuna, em 1970, para valorizar a cultura popular
brasileira, principalmente a do Nordeste, há um descendente de árabes e um
judeu", que "são primos, por isso brigam muito" (lembrou do
eterno conflito no Oriente), "mas aqui eles não brigam, não". Justificando
uma "certa vaidade", que às vezes o pega de jeito (por exemplo, ver
tantas pessoas num domingo ao meio-dia para assisti-lo), contou que dentro dele
há duas pessoas: "Uma sou eu, a outra é o Ariano Suassuna, que me dá um
trabalho danado".
Ficou feliz com o título de Cidadão do Rio de Janeiro. "Assim, agora, sou
conterrâneo de Villa Lobos e de Lima Barreto". Não gosta de "poesia
que a gente entende logo". Prefere "os versos obscuros", e citou
como exemplo o Garcia Lorca. "Um dia, li um poema do Lorca, do livro ‘O romanceiro
cigano’, e não entendi nada, mas achei muito bonito". Risos. Mas logo
ficou o dito pelo não dito, pois se deu ao trabalho de explicar verso por verso
a uma plateia definitivamente conquistada e reverente. "A poesia tem
lógica superior", filosofou.
Fez a turma chorar quando cantou, junto com os músicos, os versos tristes de
Carlos Pena: "Sino, claro sino / tocas para quem? / Para o Deus menino / que
de longe vem / Pois se o encontrares, / traze-o ao meu amor, / E o que lhe
ofereces, / velho pescador? / Minha fé cansada, / meu vinho, meu pão, / meu
silêncio limpo, / minha solidão".
Lembrou de Miguel Arraes, de quem foi secretário de Cultura em Pernambuco, para
anunciar a presença do neto do velho e saudoso governador, Eduardo Campos
("por este ponho a mão no fogo"), sentado na plateia, e hoje também
voz maior do Palácio Campo das Princesas, sede do Executivo pernambucano.
Contou que fazia a campanha do Eduardo, "uma das mais bonitas que já vi",
quando em casa, na praia, surgiu um dos seus netos que anunciou: "Vovô, lá
vem o Hugo". Ariano perguntou: "Que Hugo?" O menino:
"Hugovernador". Com a verve que lhe é peculiar, Suassuna concluiu,
para aplausos gerais da platéia do Municipal: "Agora, quero o Hugo,
upre". Todo mundo entendeu que é "upre"sidente...
Presenças. O deputado Ciro Gomes, a linda Patrícia ao lado, me disse que Ariano
"é a expressão mais exuberante da maravilhosa cultura popular
brasileira". Marieta Severo sentiu-se "na sala de estar" do
escritor. Como não havia jorrar de champanhe e cascatas de camarões, tampouco fotógrafos
de revistas de celebridades, procurei, procurei e não encontrei nenhum dos
decantados "socialites" cariocas na platéia. Deviam estar descansando
dos embalos de sábado à noite.
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Texto originalmente publicado na "Tribuna da Imprensa".